29 de ago. de 2011

Artigo Processo de Criação "Corpo Edificado" NEKA - ABRACE 2011.

BITTAR, Adriano. As Células Corporais e o Uso das Manipulações em Ação no Processo Composicional de “Corpo Edificado”. Brasília: Universidade de Brasília; bolsista Programa de Fomento CAPES; doutorando; Professora orientadora Dra. Maria Beatriz de Medeiros. Dançarino e coreógrafo.*

RESUMO
A comunicação objetiva expor o processo composicional em andamento utilizado na criação do espetáculo de dança contemporânea “Corpo Edificado”. O trabalho pretende pensar uma forma de criação coreográfica na qual representações imagéticas chamadas de células corporais e estímulos táteis específicos, as manipulações em ação, fazem parte do repertório de ferramentas utilizadas para a composição das cenas. Utilizam-se conceitos base para esse estudo, dentre eles o de Epigenética e o de Propriocepção Afetiva.
Palavras-chave: dança contemporânea. processos composicionais. imagens. manipulações.

ABSTRACT
The Body-cells and the Manipulations in Action on the Dance Composition Process of “Corpo Edificado”.
This talk is about the dance composition process used to create the piece “Corpo Edificado”. While creating this piece, the dancers and choreographers used the so-called body-cells and the manipulations in action in order to conceive the dance. This research was based on different concepts, such as Epigenetics and Affective Proprioception.
Key-words: contemporary dance. dance composition. imagery. touch.

Essa comunicação objetiva descrever o processo composicional que vem sendo utilizado na feitura do espetáculo “Corpo Edificado”, do grupo de dança contemporânea NEKA. Para além da metodologia escolhida, serão descritas duas ferramentas-chave, criadas e utilizadas pelo diretor-intérprete-criador da obra em questão: as células corporais e as manipulações em ação. A percepção é a de que essas ferramentas parecem refletir a gênese de um renovado conceito de movimento, utilizado para a preparação corporal do dançarino e a composição da cena. Este conceito de movimento, ainda não batizado com um nome próprio, baseia-se essencialmente na Epigenética (LIPTON, 2008) e na Propriocepção Afetiva (MONTERO e COLE, 2007).

O processo de criação de “Corpo Edificado” iniciou-se em fevereiro de 2011, quando dançarinos contemporâneos autônomos da cidade de Goiânia resolveram se unir para formar o NEKA, e começar a pesquisar algo diferente do que estava sendo feito na cena da dança goiana. Como todos os quatro interessados já haviam se envolvido em um momento ou outro de suas carreiras, e em diferentes funções, com a Quasar Cia de Dança, foram necessários vários encontros e muita discussão para traçar uma estratégia que levasse à pesquisa de outros padrões de movimento e formas de se dançar.

Primeiramente foi selecionado para estudo o texto “O Futuro é Leve, Intuitivo e Sensorial” (CARVALHO, 2011). Ele serviria como referência para o entendimento das características da agoralidade e das maiores tendências no design e moda no mundo, já que havia uma necessidade de criar uma percepção integrada sobre que rumo tomar para a composição coreográfica. A promessa do texto era de relatar as observações feitas por um famoso grupo de designers e arquitetos, em relação às tendências em design de interiores e mobiliários que influenciariam a forma como os seres iriam morar e se comportar em suas casas em 2011.

De forma análoga, a leitura daquele texto deveria auxiliar o NEKA a desvendar sinais e comportamentos, as tendências, que influenciavam a forma como os integrantes dançavam ou eram estimulados a dançar. As quatro tendências para 2011: Austeridade Emocional; Empatia Surpreendente; Re-balancing; e Perspectivas em Transformação.

O grupo entendeu que a Austeridade Emocional deveria ser traduzida em uma postura que os intérpretes-criadores deveriam ter, de dançar o que os movia internamente. Como se uma verdade emocional devesse estar conectada ao gesto dançado. Dessa forma, estariam afastados da composição da cena o seguir de passos pré-determinados, assim como o dançar pelo prazer de seguir formas e não a dinâmica interna do movimento. A improvisação dirigida deveria guiar a dança que estava sendo proposta e uma escuta do corpo do outro tinha que ser necessariamente trabalhada.

A Empatia Surpreendente foi interpretada como àquele ato dançado que deveria se aproximar do cotidiano dos expectadores, sem tanto forçar os movimentos de grande amplitude e os virtuosismos. A dança seria virtuosa pelo que carregava de componentes da cultura de cada um, original, viva e forte.

O Re-balancing seria estimulado em todo o processo coreográfico, com o uso de técnicas para a preparação corporal, e a criação, que pudessem integrar o corpo em suas várias facetas.

A Perspectiva em Transformação daria o tom geral do trabalho. Deveria haver um exercício da flexibilidade no cotidiano do NEKA: para experimentar diferentes formas de mover, para fazer aulas e ensaiar (às vezes separadamente, outras com o grupo todo), e dançar em inusitadas situações (em performances pela cidade e não só em palcos oficiais). A essa atitude foram vinculados os conceitos de qualidade em sustentabilidade.

Com essa primeira gama de informações conceituais e alguns rumos em mente, outros textos foram consultados. Em “Gesto e Percepção” (GODARD, 1995), chamou à atenção a colocação feita de que o que normalmente dá sentido à dança é a dinâmica interna do gesto. Como antes entendido, a forma deve ser a tradução dessa dinâmica interna. O gesto é geralmente percebido no seu global, sem entrar na carga expressiva e nos elementos vinculados a ela. O pré-movimento ou a linguagem não consciente da postura, que é a resposta do corpo à gravidade e ao peso, vai produzir a carga expressiva ao movimento que se organiza. Assim, uma musicalidade postural antecipa cada gesto. Ao agir no pré-movimento, no estado emocional das articulações e músculos, o bailarino se expressa em sustentabilidade, criando, recriando e exibindo auto-poiesis. É na tensão existente entre a distância do centro motor do movimento e o centro de gravidade que reside a carga expressiva do gesto. O pré-movimento só é acessado quando se tem acesso ao imaginário. O toque enriquece o imaginário e estimula o pré-movimento.
O último texto lido, “Sobre as Qualidades do Movimento Humano” (BERTAZZO, 2002), reforçou a questão de que o sentido de orientação espacial nos seres humanos é determinado mais pelos músculos que se encontram à frente do corpo. Dessa forma, o impulso é de lançar-se à frente, indo de encontro a tudo o que está fora e à frente do corpo. Sendo assim, os seres humanos deixam de olhar para dentro e para trás. Para contrapor essa tendência, as articulações desenvolveram-se de forma esférica, com os sistemas de enrolamento e desenrolamento da coluna vertebral dando o sentido do eixo do corpo. Essa capacidade de movimento esférico traz o ser humano para dentro de si mesmo, fator imprescindível para a saúde da dinâmica psíquica do ser. Essas são os princípios motores que deveriam ser utilizados em qualquer processo de construção de movimento.

Através dos estudos teóricos iniciais desenvolvidos, descobriu-se que se os bailarinos do NEKA tivessem acesso a um rol mais específico de informações corporais que os fizessem mais desconstruídos, sensíveis, focados e criativos, haveria maior chance de os mesmos apresentarem melhor qualidade em cena, ao se moverem de formas diferentes.

Para tal, percebeu-se que o estudo de imagens específicas sobre os gestos trabalhados nas aulas de corpo e no processo coreográfico que se seguiriam, associados à prática de diferentes técnicas em dança, de condicionamento, e a terapias manuais, poderia constituir um caminho possível para o NEKA.

Dessa maneira foi consentido que a sensibilização corporal dos dançarinos seria feita pelo estudo das chamadas células corporais:

“Denomina-se célula corporal qualquer estudo artístico que, impresso em papel ou feito em gesso, tela ou no que mais puder ser imaginado, até mesmo no próprio corpo humano, tenha como tarefa revelar texturas, imagens, cores e linhas de movimento de partes anatômicas dos corpos humanos e de, através de metáforas imaginadas, fazer com que os corpos acordem em si uma gestualidade mais expressiva. Ao revelar o que normalmente está escondido, ou ao propor uma imagem que poderá vir a funcionar como uma motivação para entrar em contato com os sentidos, as células corporais estimulam representações internas dos movimentos que serão executados.” (BITTAR, 2005, p. 113)

Ao mesmo tempo, o NEKA também usaria o toque, as manipulações em ação, onde o corpo do bailarino reagia ativamente ao toque de outrem, como o do professor das aulas de corpo, ou dos outros bailarinos. Manipulação em ação é um termo criado pelo autor dessa comunicação. Ele faz referência a um tipo especial de toque que busca direcionar o corpo do intérprete, para que tenha contato com a dinâmica interna do movimento. Ele é aplicado por mãos treinadas enquanto o intérprete se move, em ações-reações contínuas.

O primeiro projeto do NEKA, submetido à Lei de Incentivo Municipal à Cultura de Goiânia, em junho de 2011, objetivou produzir um espetáculo de dança contemporânea, com caráter de intervenção urbana, denominado “Corpo Edificado”.

Em “Corpo Edificado”, o NEKA pretende revelar a importância de se vivenciar e experimentar o espaço como forma de conscientização intelectual e corporal, facilitando a leitura de como o corpo pode construir um espaço e, por sua vez, como o espaço pode intervir em um corpo. A proposta é de explorar as possibilidades de movimentação existentes em formas geométricas, edificadas na cidade de Goiânia, ou na lembrança da percepção de um lugar na cidade.

Assim sendo, para a concepção do espetáculo procedeu-se em um recorte de pesquisa de quatro momentos: estudo e demonstração das relações mais latentes entre arquitetura e dança, tais como: peso, massa, eixo, de onde parte o movimento, energia oposicional, volume, ritmo, e equilíbrio; estudo das influências do espaço construído da cidade nos corpos dos bailarinos, mostrando quais as qualidades da movimentação resultantes e as variações entre as diferentes formas; construção de objetos geométricos que serão utilizados nos espaços urbanos aonde os espetáculos acontecerão. Esses objetos devem aumentar a interferência no corpo do bailarino, influenciando a forma da dança no espaço urbano escolhido; interação direta com o público presente, explicitando as possibilidades de se vivenciar de forma diferente os espaços construídos da cidade.

Dentro deste raciocínio, buscou-se trazer substratos teóricos que ajudassem a entender os mecanismos envolvidos nessa particular transposição das linguagens do estudo das imagens/células corporais e do toque/manipulações em ação, em dança.

Verificou-se que as ações movidas por propósitos e intenções na dança do NEKA poderiam ser mais ativadas se as reflexões de Lipton (2008) sobre a Epigenética fossem incorporadas ao cotidiano desses bailarinos. Essa nova ciência repensa o dogma da neurociência, que via o corpo como uma máquina regulada pela ação dos genes. Na Epigenética, o ambiente é o maior responsável pela transformação e ativação desses genes. Essa ciência acredita que a física quântica estabelece leis mais precisas do que a newtoniana, ao explicar que tudo no mundo é fruto das relações vibracionais da energia em um nível subatômico. Portanto, o corpo seria regulado por campos de vibração. Quanto mais porosos e fluidos os seres se tornarem, mais apresentarão capacidade de inter-relação e comunicação.

Acredita-se que o sistema de fáscias do corpo humano, 12 tipos de tecidos fibrosos e elásticos, que envolvem todos os sistemas corporais, estabelecendo comunicação e a possibilidade de passagem de elétrons pelo corpo todo, funciona como uma espécie de teia que permite a homeostase. Essa teia pode estar fluida para ajudar o corpo a funcionar bem, ou pode estar cheia de tensões e bloqueios provenientes de vários estímulos: pensamentos, sentimentos, ações, posturas, lesões, bloqueios das passagens no corpo. A forma de encarar a vida de cada um manifestando-se na estrutura fascial. A compreensão desse sistema em ação joga luz em aspectos até então pouco considerados na composição do movimento para a dança.

Portanto, esse conhecimento poderia servir de base para a criação de gestos pelo intérprete, que ao trabalhar na composição da cena, levaria em conta todo esse repertório de informações sobre o corpo, transcritos nas células corporais confeccionadas pelos intérpretes-criadores.

Já a Propriocepção Afetiva é um termo que nomeia um novo sentido estético. Antes relacionada ao controle motor, e utilizada pela neurociência para designar o sentido de posicionamento de um segmento corporal no espaço, a propriocepção agora é chamada de: “[...] “sexto sentido” (que) vem sendo estudado e relacionado ao prazer no e do movimento.” (MONTERO e COLE, 2007, p. 299). O prazer no e do movimento parece formar um vínculo com a interação harmônica entre intenção e ação, tão sonhadas na dança:

[...] enquanto a visão é um meio importante para a auto-avaliação estética, ela não é o único meio: dançarinos profissionais, pelo menos, parecem experimentar o sentido estético proprioceptivamente e fazer julgamentos estéticos baseados, pelo menos em parte, na experiência proprioceptiva. Realmente, a maior parte do trabalho de um dançarino envolve o constante refinamento estético de qualidades de movimento que se baseia no input proprioceptivo. (MONTERO, 2004, p. 02)

Conhecer essa nova função dos proprioceptores amplia a urgência deste desvelar dos gestos pesquisados na dança contemporânea, aqui proposto. Se a dança contemporânea quer atingir mais e mais expectadores, será necessário expandir a noção do corpo que dança. Essa expansão e revelação pode dar maior feedback à Propriocepção Afetiva dos bailarinos, tornando-os mais aptos a criar novos gestos e um novo pensamento do corpo.

Ao revelar complexos processos em ação imagina-se estar não somente inovando, mas também alinhando o discurso da dança ao mais atual na filosofia, neurociência, artes plásticas e artes visuais, dentre outras áreas, e aos desafios dos processos de treinamento e composicionais para a dança na atualidade.

Referências Bibliográficas
1. BERTAZZO, I. Sobre as Qualidades do Movimento Humano. In: VARELLA, D. BERTAZZO, I. JACQUES, P. Maré: vida na favela. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2002.
2. BITTAR, A. Hibridismos e Interfaces: o estudo de células corporais para o dançarino de uma partitura coreográfica contemporânea. Dissertação de mestrado. Salvador: UFBA, 2005.
3. CARVALHO, A. O Futuro é Leve, Intuitivo e Sensorial. Arc Design: n. 72, 66 – 68, 2011.
4. GODARD, H. Posfácio - Gesto e Percepção. In: MICHEL, M. GINOT, I. La Danse au XXéme siècle. Paris: Bordas, 1995.
5. LIPTON, B. The Biology of Belief: unleashing the power of consciousness, matter and miracle. USA: Hay House, 2008.
6. MONTERO, B. COLE, J. Affective Proprioception. Janus Head: 9 (2), 299 – 317, 2007.

*Este artigo será publicado no site da Associação Brasileira de Artes Cênicas/ ABRACE. A comunicação do mesmo será realizada no Encontro Científico da ABRACE, que acontece em Setembro de 2011 em Porto Alegre.

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